terça-feira, 3 de julho de 2012

O Papel do Torcedor Pastel


Quando a FIFA dá bola-fora, a torcida é sempre atingida.
Quando perguntaram ao Frei Leonardo Boff o porquê de ser pessimista quanto à realidade atual, ele respondeu que não era o caso, mas sim de ser realista ante a péssima realidade.

Podem, portanto, me chamar de ranzinza ou de coisa pior, mas é de aspectos negativos que este texto vai tratar. Pensei que era necessário fazer uma breve reflexão sobre situações que me tem chamado a atenção e que podem se tornar tendências de gosto duvidoso.

De maneira geral, este blog tenta abordar o mundo da bola fazendo, quando possível, um contraponto entre o futebol de ontem e o futebol de hoje, não por simples romantismo ou nostalgia, mas por acreditar que algo muito importante – algo diretamente associado à essência desse esporte – esteja se perdendo, se deturpando ou, no mínimo, se desvirtuando.

Um exemplo.

Voltemos algumas semanas; à final da Liga dos Campeões da Europa. O juiz acaba de apitar, determinando o fim do jogo, e o Chelsea é campeão. Enquanto os jogadores do time inglês festejam em campo a épica e improvável vitória contra os germânicos, seus alucinados torcedores, simplesmente extasiados, celebram a conquista nas arquibancadas.

Eis que não mais que de repente, em meio à catarse de todos – vitoriosos e derrotados -, menos de um minuto após o fim do jogo, surge uma música estrondosa pelo moderno sistema de som do estádio, sufocando os gritos de alegria, tratando a euforia do sucesso ou a dor do fracasso da mesma e fria maneira: como pequenos e dispensáveis detalhes no cronograma da festa.

Os gritos de guerra e as canções de júbilo que se danem, se o hit da moda é o que deve ser ouvido pelo torcedor que está no estádio ou mesmo por quem está em casa, sob risco de toda celebração parecer uma cópia reeditada de si mesma, dada a pasteurização caracterizada pelo enfadonho FIFA modus operandi de ser. Nele, mais importante que a vida em si e as emoções sobre as quais o jogo se sustenta, é saber se o palco sobre o gramado já está pronto para receber os doutos sanguessugas do esporte, ávidos por aparecerem na foto à hora da premiação (ou mesmo para surrupiar una medallita, de quando em vez).

Claro, não se pode esquecer a maquininha cuspidora de papel prateado, algo que surgiu como novidade aceitável, mas que ninguém supunha que se tornaria um lugar comum, por vezes inconveniente ou mesmo deselegante; cafona, mesmo. 

No futuro já experimentado, todas as imagens se condensarão num tablado asséptico estampado por patrocinadores e ornamentados por papeis prateados; será impossível diferenciar as conquistas, o local, a cidade ou até o estádio em questão. Tudo terá de ser dentro do novo padrão mundial, segundo o qual a espontaneidade não será mais encarada como uma qualidade, senão como um acontecimento pouco benfazejo.

Nesta recém-encerrada Eurocopa, após cada gol, uma mesma música ecoava pelos autofalantes e estimulava os torcedores a comemorá-los do mesmo modo, entoando-a em uníssono, independentemente de qual seleção o marcasse. Se fosse gol, todo mundo cantava ô-ô-ô e pronto! Quando saquei que era uma norma do torneio, mais uma vez lembrei de 1984, do George Orwel, e da mentalidade totalitarista que o livro denuncia. A FIFA ou a UEFA, querendo participar, poderiam fazer tocar uma musiquinha que tivesse a ver com a seleção em questão, no mínimo!

Com uma igualdade imposta, o coletivismo do ato perde sentido a partir do momento em que se torna, mais e mais, artificial. Perde-se, nesse novo ritual, a possibilidade do torcedor se manifestar pela sua identidade e tradições nacionais. Perde-se a espontaneidade que o momento propicia, condensando-a num gesto premeditado e repetitivo. Mais uma vez, os donos do futebol tentam assemelhá-lo, tanto quanto possível for, a um jogo de vídeo game: é gol? Toca a musiquinha! Sintetize-se a alegria! Agora, vai perguntar a um torcedor do Boca Juniores ou do Corinthians (só para prestigiar os finalistas de amanhã) se eles topariam substituir seus cânticos históricos pelo último sucesso da Beyoncé ou do Teló; tenha dó!

São fatos assim que entristece o cidadão... E também ver um campo rodeado por seguranças robóticos que não se movem por nenhum motivo, que não o de reprimir possíveis invasões ou de informar supostas infrações cometidas pelo torcedor. São figuras estranhas que tiram do esporte a sua verve popular e democrática ao estabelecer uma cultura de vigilância e terror à beira dos gramados – sempre em nome da proteção máxima ao patrocinador e não ao torcedor, registre-se.

Algo que se contrapõe ao futebol de ontem, quando na Copa de 82, no fatídico Brasil 2x3 Itália, uma sorridente policial tomava conta, tranquilamente, de toda uma extensão da arquibancada do Sarriá, ao som do samba, do suor e da cerveja da torcida brasileira!

Ano que vem, o Brasil vai fazer seu papel de bom garoto, atendendo a toda e qualquer vontade da FIFA durante a Copa das Confederações – evento-teste para a Copa do Mundo. Resta saber se o novo jeito do Brasil jogar, fora de campo, irá respeitar a cultura nacional ou se se converterá em apenas mais uma demonstração do nosso colonialismo atávico. Com a palavra, o ufanista Ministro Rebelo.

foto de joão sassi
campão do varjão - df

10 comentários:

  1. O artificialismo nos une em todos os campos modernos - nos de futebol e nos da vida também. Saudade de épocas vividas e de até antes de nós, quando as investidas do consumismo e das grandes organizações eram menos psicológicas, mais perceptíveis a olhos atentos e, portanto, possíveis de combater.
    Hoje em dia, em que a informação vem à velocidade da luz, tudo parece muito natural...
    Até ficar de costas para a partida, a pessoa feita em zumbi, ciborgue ou Homem de Lata - que não almeja coração.
    Compartilho desse saudosismo da espontaneidade, do grito ingênuo do torcedor e da comemoração sem pasteurização e "pastelrização".
    Infelizmente, duvido muito que o pseudo-ufanista, agora reconhecido vira-casaca, não se deixe levar pelo doce tilintar da máquina registradora.
    Ótimo texto. Precisa análise.

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    1. Tudo parece natural, Marcya, ainda que explicitamente anormal.

      As autoridades envolvidas deveriam prezar pelo torcedor que, afinal, é quem banca a festa. Mesmo a verba dos patrocinadores, antes saiu do nosso bolso.

      Estive no Ginásio Nilson Nelson, em Brasília, acompanhando um jogo da fase final do NBB, quando pude sentir o quão desagradável é ter um desses animadores de torcida pós-modernos gritando ao pé do meu ouvido a todo instante... Verdadeira tortura para a alma!

      Um beijo enorme para você e a expectativa de sempre contar com belas contribuições como a sua!

      Deste D.T.

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  2. A FIFA quer, a ferro e fogo, nos impingir um monte de mudernagens marqueteiras. Fico me perguntando se eles cogitaram ou não banir as vuvuzelas na África. A banda da Marinha garantindo uma trilha sonora mágica para o Brasil na copa de 1982 me fez recordar na hora as charangas da Fonte Nova, com muita percussão e alguns sopros - a música comendo solta durante o jogo (inclusive com caras que estavam ali pela música - nem se importavam com o resultado da partida). Sem elementos como esse o espetáculo fica ainda mais empobrecido, uma vez que já se baniu, com a valorização extrema dos ingressos e o fim da geral, a presença das classes mais baixas no estádio. Talvez passe a ser mais interessante frequentar jogos da terceira e quarta divisão, semi-amadores, mas por isso mesmo ainda capazes de surpreender e emocionar de algum modo.

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    1. Não sei se você assistiu ao Esporte Espetacular, no último Domingo, cuja última matéria homenageou o time de 82. Nela, explicava-se a presença da banda da Marinha do Brasil nas arquibancadas espanholas; foi à pedido da CBF que eles acompanharam a Seleça - ao menos uma boa ideia na vida esses cartolas haveriam de ter, não é mesmo?!

      No mais, acho que você está certíssimo ao pensar numa alternativa (como as séries C ou D) para frequentar espaços públicos nos quais, de fato, se sinta a presença do público; e não a onipresença do sistema a nos dirigir em suposto gozo de espírito.

      Acho que, dentro dessa proposta, o futebol deveria ser reinventado: motim geral à FIFA e renascimento do conceito do jogo que deve, necessariamente, servir ao público, e não a interesses minoritários.

      Grande abraço del D.T.

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  3. Caro amigo João.

    Parabenizo pelo blog,conteúdo excelente.

    Sou a favor do futebol moderno, de maneira organizada e civilizada: gerando receita, emprego e entretenimento (inclusive nos intervalos, estilo o que os americanos promovem na NBA e Futebol Americano).

    Sou corintiano e a forma que o Timão vem comercializando os ingressos com cadeira numerada e sendo respeitado o referido lugar numerado é sinal de avanço, esse é meu ponto de vista.

    No quesito segurança,especificamente quanto a invasão de campo e brigas entre torcedores rivais e "amigos", entendo, que se trata de falta de civilização, ou seja, de aspectos peculiares à vida intelectual, artística, moral de nós brasileiros.

    Enquanto continuarmos sendo tolerantes e coniventes com o que a FIFA, CBF, Deputados e Senadores anda fazendo (Lei Geral da Copa) para sediar a Copa de 2014 no Brasil, continuaremos figurando como torcedores pastel.

    Vaiiii Corinthians!!!!

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    1. Caro Vitor, obrigado pela presença positiva, bem como pela elogiosa opinião ao espaço. Seja bem-vindo ao Borogodó!

      Concordo parcialmente com seu ponto de vista, pois acredito que a elitização da torcida, ainda que satisfaça a alguns, evidentemente excluirá considerável parcela de torcedores dos estádios - exatamente como vem acontecendo nos jogos do Timão.

      Nesse sentido, o Márcio fez, em seu comentário, logo acima, uma bela diferenciação entre o estádio popular e o elitista.

      E é, ao meu ver, nesta parcela excluída que se encontra o caldo cultural necessário à vida nos estádios - e é disso que trata o Borogodó F.C.

      Creio que a importância e o desenvolvimento de um país não se mede simplesmente pelo acúmulo de riquezas ou pela capacidade de proporcionar conforto material à sua população (o que é desejável), mas inexoravelmente pela capacidade de respeitar e manter sua própria cultura. Refiro-me à alteridade do povos, segundo a qual, tanto mais nos enxergamos e nos identificamos como nação à medida em que conhecemos e aceitamos nossas diferenças.

      Eu, por exemplo, não curti minha experiência no Ginásio Nilson Nelson, para ver as semis da NBB: foi triste ver a tentativa dos promotores do evento de imitar o que rola nas quadras da NBA, por exemplo. Por mais espetacular (e espetaculosa) que seja a forma estadunidense de vibrar, e por mais que haja adeptos àquele estilo de se torcer, definitivamente não é parte do nosso estilo, não é genuíno ou espontâneo. Foi uma tremenda forçação de barra!

      Concordo quando você coloca a questão da Educação como prioritária à melhoria do convívio entre adversários, nos estádios, pois é, em grande parte, dela que trazemos e acentuamos os tais aspectos peculiares à nossa vida intelectual, artística e moral.

      No mais, é necessário sublevar-se contra o poder estabelecido! Slogan cliché? Talvez, mas ainda atual; é por conta dele que se estabelecerá uma lógica mais humana e menos comercial dentro e fora dos estádios.

      Defendo a Nação que quer SER, e não mais da que quer apenas TER.

      No mais, tudo na mais perfeita Paz (um salve para os Novos Baianos)!

      Um abraço deste D.T.

      Ps: Vaaaaaaai, Corinthians!!!

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    2. Obrigado pelas boas vindas.

      Ok! Concordo com sua colocação, NÃO ao elitismo, separatismo e absolutismo!!!

      Sugiro que nossos dirigentes ao construir os estádios mantenham a famosa "Geral" ou reservem uma quantidade de assentos a um custo acessível a todos que não possuem condições de arcar com uma cadeira com o preço mais elevado.

      Só para recordar: A "Geral" do Maracanã lotada era o máximo!!! Segue o link: http://www.youtube.com/watch?v=JALzM_QiOfM

      Forte abraço

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    3. Beleza pura, Vitor! Apoio sua ideia, afinal, o estádio deveria ser um espaço para o convívio de toda a sociedade, e não somente de parte dela.

      Quanto à recordação, maneiríssima! Tenho irmãos que estavam presentes ao Maraca, naquela tarde de sol e festa. Dizem que foi frustrante o 0x0, mas que valeu muito pela farra da Magnética com a chegada do Baixola.

      Abração,

      El D.T.

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  4. Só para constar: não sei se mudou depois, mas em priscas eras (Thomas, Dumars, Rodman e Laimbeer ainda em ação) presenciei um Pistons X Nicks no Madison Square Garden e não havia nada de muita presepada ou barulho no serviço de alto-falantes do ginásio. Apenas, eventualmente, aquela gravação de uma sequência de acordes, caa vez mais rápida, tocadas num órgão. Nem sonhar ter um cara berrando no microfone quase o tempo todo, como tamnbém já pude ver em jogos da NBB em Brasília. Nos estádios da NFL, MLB e ginásios da NBA rola a frescura de se proibir bandeiras. Charangas, nem sonhar! Por outro lado, eles estão a anos luz da gente no quesito civilidade da torcida, pois não tem essa de área reservada para a torcida tal. Ficam, lado a lado e sem brigar, torcedores oponentes, o que, a meu ver, torna o espetáculo muito mais interessante. Se dependesse de mim, no futebol seria assim também.

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    1. Falou e disse, Márcio. Concordo com a presença de todos, juntos, sem distinção. Assisti à final do Carioca de 2007 num setor misto do Maracanã, onde botafoguenses e flamenguistas conviveram numa boa, sem qualquer perrengue!

      O Mengo saiu na frente e eu vibrei. Tomamos a virada e fui esculachado. No fim, Renato Augusto empatou e levamos para os penais, quando fomos campeões. Torcer lado a lado com os rivais tornou toda a experiência ainda mais marcante.

      Abraço deste D.T.

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